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Category Archives: Homicídio conjugal

UMAR fez o registo de imprensa de casos de mulheres assassinadas; em todo o ano passado, haviam sido contabilizadas 23 mortes

A mulher que ia morrer vestiu um biquíni com um estampado de trevos e a expressão “Party Girl”. Enfiou umas calças de ganga azuis escuras, um top de algodão azul claro, uns chinelos de dedo. Saiu de casa, em Paços de Ferreira, entrou no carro de um rapaz que conhecera em Março, através do teletexto da SIC. Era domingo, 3 de Agosto, estava de folga, ia à piscina. Transformou-se na 31.ª mulher a ser notícia este ano por ter sido morta por um homem com quem mantinha ou mantivera uma relação íntima. Um casal deu com o seu corpo inerte, na mata dos Cinco Caminhos, junto à estrada que liga Alfena a Sobrado (Valongo). Levara dois tiros.

Agostinha Oliveira, operária fabril, 24 anos, não tinha um único documento. A Polícia Judiciária lançou um apelo, divulgou imagens. O tio, Hernâni Alves, viu a fotografia ao desfolhar um jornal. O namorado, de 22 anos, foi detido no dia 7. Entregou a pistola, desenterrou os documentos.

O Observatório de Mulheres Assassinadas, projecto da organização não governamental União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) que colige as notícias publicadas na imprensa, nota a diferença. No ano passado juntara notícias de 21 mulheres mortas por homens com quem mantinham ou tinham mantido uma relação íntima.

“Invisibilidade”
“Estamos a analisar as notícias”, adianta Artemisa Coimbra, que integra o Observatório e fez tese de mestrado sobre violência doméstica, imprensa e questões de género. Surpreende-a a curta idade de algumas. E a proporção de namorados e ex-namorados, num quadro muito feito de maridos, ex-maridos, companheiros e ex-companheiros.

Que se passa? O ano passado foi um ano anormal. Só contou 21 crimes de homicídio consumado aos quais se somaram dois “descobertos” mais tarde, e 57 crimes de homicídio tentado. Em 2006, a UMAR registou 39 consumados, 43 tentados. Este ano, a lista já soma 31 consumados, 35 tentados. Pode ser só uma questão de maior eficácia dos agressores, mas Coimbra levanta a hipótese de efeitos da crise económica.

O mês de Julho foi o pior. Acabou a 29, com a morte de uma jovem de 29 anos à porta do Café Mira Rio, na Maia. O suspeito, detido pela Polícia Judiciária ao princípio daquela noite, era um homem de 39 anos que com ela já mantivera (ou desejaria manter) uma relação amorosa.

A imprensa não revelou o seu nome. Muitas vezes não revela. Artemisa Coimbra fala em “invisibilidade”. Ao analisar 72 notícias sobre mulheres assassinadas entre Novembro de 2004 e Novembro de 2006, encontrou 23 sem nome. “A nomeação da mulher desaparece por oposição à nomeação do agressor e, também, à dos/as filhos/as.” E isso, na sua opinião, não é inócuo.

Desconhecemos “os percursos de vida, as histórias e as experiências destas mulheres”. Deles, dos agressores, sabemos. Quase todas as notícias retratam, “por vezes com prolongado detalhe”, os seus “problemas emocionais, psíquicos, financeiros, de dependência ou até de crenças”: “Referem o ciúme e a paixão como um dos principais motivos” do crime.

Sentimento de propriedade
Um exemplo? A 19 de Julho, em Jovim, Gondomar, houve uma discussão acalorada. Maria Peixinho, 74 anos, levantou-se da mesa e refugiou-se no quarto. O marido, Arnaldo Peixinho, 76 anos, pegou numa faca de cozinha e foi atrás dela. Uma filha ouviu a mãe gritar e correu para o quarto. O pai matara-a, fechara-se noutro quarto e matara-se. Também aqui a imprensa fala em ciúme.

Uma semana antes, 13 de Julho, Madalena Gaspar foi surpreendida pelo ex-companheiro ao estacionar o carro à porta da casa que dividia com o pai, de 83 anos, em Comenda, Gavião. Ela tinha 33 anos. Ele tinha 67 e mantivera com ela uma relação extraconjugal há perto de duas décadas. Não aceitou o fim do namoro.
Matou-a com dois tiros de caçadeira. O corpo dele foi encontrado a um quilómetro dali, debaixo de um sobreiro. Encostara o cano ao queixo e premira o gatilho.

Quando o homem se suicida, a mulher como que se apaga. Este ano já houve pelo menos sete homicídios seguidos de suicídios. Às vezes o homicídio é o desfecho de uma violência conhecida: a 27 de Julho, Bruno, conhecido em Vale da Bica, Ponte do Sor, terá espancado a namorada, Sónia Castelhano, até à morte; viviam juntos há um ano; segundo os vizinhos, as discussões eram muitas e frequentes.

Outras vezes é uma surpresa para quem está ao lado: a 23, na ilha Graciosa, nos Açores, um casal era encontrado sem vida dentro de casa; o militar da GNR, de 34 anos, baleou a mulher, de 22, e suicidou-se; João Mendonça prestava desde 1999 serviço no posto fiscal da Praia. Naquele dia, convidara a mulher e alguns amigos para jantar fora; depois do jantar, o casal regressara a casa; de repente, tiros.

Quase sempre, Artemisa Coimbra lê neles um sentimento de propriedade dos homens sobre as mulheres. Os homens não aceitam o fim do namoro, o pedido de divórcio. É como se só eles pudessem decidir o rumo da relação.

Fonte: PUBLICO, versão impressa online, 26 de Agosto de 2008.

Ministra da Mulher propõe que as leis sejam benevolentes com mulheres que decidam eliminar  o seu “torturador”.

O Governo britânico anunciou ontem um projecto de lei para acabar com o assassínio na violência doméstica. O objectivo é derrogar normas assentes em anacronismos com quatro séculos. O problema, dizem os críticos, é que prevê que mulheres vítimas de maus tratos que matem o marido sejam tratadas com uma compreensão insuportável.

A ideia dos promotores do projecto é acabar com o ambiente de exculpação até agora favorável aos homens. A expressão maldita chama-se “defesa por provocação”. Eles podiam invocá-la e acabar condenados a penas quase simbólicas, ou mesmo simbólicas. Elas, não.

Os media britânicos, por exemplo a BBC Mundo, referiam ontem vários casos do passado de grande assimetria de tratamento. Em 1991, Joseph McGrail matou a mulher por ela o ter “provocado” e foi condenado a dois anos de prisão – pena suspensa. Já Kiranjit Ahluwalia, que matou o marido depois de sofrer dez anos de humilhações e violência foi pelos mesmos motivos condenada a prisão perpétua.

A ser aprovada, a lei mudará um desequilíbrio que vem desde o século XVII. A “defesa por provocação” deixa de existir. Uma pessoa que mate a outra com quem vive em resultado de um sentimento de profunda ofensa, como o adultério, não poderá alegar que perdeu a cabeça e não viu mais nada à frente.

“Não pode haver qualquer desculpa para a violência doméstica, e muito menos para matar alguém. O que possa acontecer numa relação [entre duas pessoas] não justifica o recurso à violência”, disse a ministra britânica para a Mulher, Harriet Harman, citada pelos media. “Queremos pôr fim a uma cultura de desculpas que permite a um homem que tenha morto a sua mulher dizer que a culpa não foi sua, porque [ela] tinha uma relação [extramatrimonial] ou porque o tinha provocado”, acrescentou.

Mas a lei quer ir muito mais longe: quer que a mulher que mate o marido na sequência de anos de maus tratos possa ver a acusação de homicídio reduzida à sua expressão mais simples – o seu carácter casual ou não premeditado (“manslaughter” é o termo referido no diploma).

As vítimas deste tipo de violência seriam dispensadas de provar que actuaram de modo espontâneo por matarem o outro, o seu “torturador”, em casos definidos como de “palavras e comportamento” ou de “receio de violência grave”.

Esta era a parte criticada ontem por alguns analistas. No Daily Mail, edição electrónica, Erin Pizzey chamava a atenção para o excesso de zelo feminista da ministra e para o carácter “absurdo” de uma reforma que diz às mulheres vítimas de relações violentas que não têm outra saída senão matar os companheiros.

“Isto podia ser verdade há um século, quando não havia refúgios nem tribunais, nem polícias especializadas nos casos sérios de violência doméstica. Mas não é o caso hoje, designadamente devido aos esforços de activistas como eu que trabalharam para mudar as coisas.”

Fonte: Jornal Publico [versão impressa online. 30 de Julho de 2008]